Era uma vez um garoto inteligente. Ao menos mais inteligente que os outros garotos do orfanato. Seu nome era Clifreu. Muito talentoso, era o mais belo, o que cantava melhor. Dos órfãos, era o preferido do senhor Sedu, dono e criador do orfanato Norte do Eden.
Clifeu cresceu no Eden e não conhecia nada além dos muros. Era o mais esperto mas, ainda assim, vivia na ignorância porque o senhor Sedu não lhes mostrava muita coisa, bastava seguirem o protocolo: obediência incondicional, e tudo estaria ok. Sedu não os ameaçava, não os educava e os tratava muito bem, lhes dando total atenção, não os deixando passar necessidade alguma e sendo amado e respeitado por cada um.
Muitos anos se passaram, os garotos cresceram em estatura. Clifreu cresceu também em curiosidade. Esse era o seu diferencial. Sua astúcia era consequência de ser observador. Olhava as plantas crescerem, a chuva chegar e sair, a noite e o dia passarem e ao invés de aceitar as histórias que Sedu lhes contava desde que se entendia por garoto, buscava compreender o que o cercava.
"A chuva cai porque quero que ela caia!", dizia Sedu em meio a risadas escandalosas, sentado com seus garotos em círculo, "E os trovões e relâmpagos são o medo que a chuva tem de mim se manifestando!" E todos ouviam atentos. Riam quando Sedu ria e calavam-se quando ele fazia uma voz mais séria ou misteriosa. Como em uma orquestra, onde o contador de história era o maestro, que comandava a natureza e as atitudes de todos que o ouviam.
Era difícil admitir, mas Clifreu estava sendo controlado também, com a diferença de que ele sabia. Mas isso não perduraria por muito mais tempo... Seu motivo de rebeldia não tardou a chegar. Sedu, há alguns meses, sumia de vez em quando do orfanato e aparecia sempre muito contente depois. Numa dessas noites de história contou o que fazia em segredo.
"Estou criando cachorros!"
Os garotos ficaram estupefatos, mais pelo tom de voz que pela palavra desconhecida.
"Cachorros?", arriscou um dos meninos, "O que é um cachorro?"
"São bichinhos felpudos, fiéis, bonitinhos e alegres." Sorria. "Muito parecidos com vocês, exceto a parte de serem felpudos."
"Mostra-nos um deles?", pediu outro garoto, logo tapando a boca, como se a feia curiosidade tivesse escorrido entre seus dentes, fechados agora num sorriso amarelo. Sedu saiu.
Clifreu, que estava a um canto da sala, indignou-se quando Sedu voltou com um monstrinho estranho lambendo seu rosto, abanando o rabo e produzindo um som horrível.
"Isso é igual a nós?!"
Ainda que estranhando seu comportamento, Sedu respondeu gentilmente:
"Não exatamente. Eles são mais frágeis e, portanto, merecem o amor e o carinho de vocês.", virou-se para trás, assobiou e disse. "Venham filhos!" E vários filhotes entraram aos tropeços e latidos, numa corrida desajeitada e contente.
Depois de meia hora os garotos riam e já brincavam, cada um com seu filhote. Exceto Clifreu, visivelmente aborrecido a um canto, remoendo na mente a cena de Sedu chamando os monstrinhos de filhos. O velho e bondoso senhor foi conversar com ele. Não demorou para que Clifreu estivesse aos berros, coisa nunca antes vista no orfanato. Todos os órfãos pararam para olhar a discussão.
"Eles são como as plantas então, crescem?"
"Sim", respondeu Sedu.
"E têm dentes pontudos e não têm inteligência como nós, portanto em algum momento vão morder."
"Possivelmente."
"Pois eles crescerão e morderão a mão que os alimenta Sedu! Livre-se deles enquanto há tempo!"
Foi a última frase que os garotos ouviram Clifreu pronunciar. O velho Sedu não suportava desobediência ou insubordinação, afinal ele nunca errava, não havia porquê o questionar! O que seria do orfanato se não se impusesse à altura nesse caso tão crítico? Um garoto querendo mandar nele, no dono?! Não... Isso não podia ser. Sedu o levou, puxando pela orelha, até uma sala no fundo do orfanato. Clifreu a olhava espantado, nunca a tinha visto. Respirava fundo, recuperando o fôlego e olhando o aspecto horrível do lugar enquanto esperava Sedu encontrar a chave certa para a fechadura.
"A construí ontem. Servirá para você passar um tempo pensando no que fez."
"Mas o que eu fiz para o senhor? Só disse o óbvio! Sabe que vai acontecer!"
"Você quis mandar em mim. Quis ser melhor, é isso o que fez."
"Mas você me deixou ser dessa forma... É culpa minha eu ser o que o senhor permitiu que eu fosse?"
"Sim."
Clifreu respirou fundo e buscou ser o mais racional possível.
"Só não estou ignorando o fato que é bem melhor só a gente aqui!" Parecia desesperado para se fazer compreender, e no fundo sabia que já tinha sido entendido. Mas ainda assim arriscava continuar uma explicação inútil com alguém que não o queria ouvir." Esses bichos que não sabem pensar vão destruir o orfanato. O destruiriam só com cocô, pelos meus cálculos. Só nesse pouco tempo vi três fazendo lá na sala. Encheriam esse orfanato em algumas horas!"
Normalmente Sedu riria dos gracejos do moleque. Mas agora não era o momento para isso. A porta se abriu, o momento de anunciar seu castigo chegou.
O quarto era imenso por dentro, se estendia a perder de vista. A porta, onde estavam prostrados, ficava no alto de um gigantesco precipício, as imensas montanhas do quarto não chegavam nem a metade da altura de onde estavam. E como fez calor depois que Sedu abriu a porta... Lá embaixo parecia quente, com toda a lava e labaredas de fogo brotando do chão. O ponto onde estavam era tão alto que os rios de lava pareciam linhas rubras desenhadas com um graveto no chão.
"Alto não? Eu chamo de Inferno. Significa, 'As Profundezas'." Vendo a palidez de Clifreu, continuou. "Bom, este é um lugar para que sofra torturas eternamente e pense duas vezes antes de me contrariar de novo, Satã!"
"Satã?"
"Significa opositor." E, com um chute no tórax, fez o garoto ingênuo, carente e curioso despencar desfiladeiro abaixo. Por um erro foi condenado ao quarto de seu castigo e tormento eterno. Enquanto caia, olhava com um olhar morto e triste o seu pai trancando a porta do Eden. Uma última lágrima escorreu de seus olhos, mas logo evaporou com o calor. Fim.
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